O Herege de Adelino's Garden
O Jardim da Hipocrisia
A maioria das pessoas de Adelino's Garden acreditava na narrativa simples: uma guerra sangrenta entre duas facções rivais, a Azul e a Vermelha, pelo controle da fronteira amazônica, um ponto nevrálgico do tráfico internacional. Os jornais e noticiários policiais narravam a destruição e as mortes como um conflito inevitável de território. Mas El Dionysos sabia a verdade. Ele a sentiu na sua medula óssea, uma verdade que a cidade, envolta na umidade e no cheiro de madeira molhada, se recusava a enxergar.
As duas facções não estavam apenas brigando por território; elas disputavam uma concessão para controlar o tráfico interno e externo de Adelino's Garden. A "guerra" era o processo seletivo, o espetáculo violento que determinava qual grupo ganharia a licença oficial para corromper a região. E Jesus, o agente de uma força maior e invisível, explorava essa disputa como terrorismo psicológico, uma cortina de fumaça para a população que precisava fazer "boca de siri" — ver, ouvir e calar.
O Convite do Falso Messias
A saga de El Dionysos começou com um convite. O homem se chamava Jesus.
Ele não tinha a barba ou a mansidão que o nome sugeria. Tinha olhos frios de jacaré, e um sorriso pela metade que mostrava algo diferente do que sentia. Ele era uma das peças-chave do contrabando que mantinha Adelino's Garden viva e doente, um mero peão de um sistema que o transcendia. A proposta veio em uma noite abafada, sob a luz fraca de um poste que piscava.
Dionysos o conheceu através dos irmãos de Delilah Ava, sua ex-namorada. Delilah havia o abandonado pouco tempo antes, com o argumento frio de que ele não era "bem-sucedido" e que precisava de um "coroa para lhe bancar". A dor daquelas palavras consumia Dionysos, e ele, que a amava mais que tudo, procurava inventar algo que pudesse ter sucesso, um caminho rápido para provar seu valor.
O Jogo do Troféu
Essa vulnerabilidade levou El Dionysos para as especulações de Jesus.
A proposta era tentadora: a sedução para ser uma espécie de lavador de dinheiro era uma ilusão. Jesus, com sua visão de predador, talvez já soubesse qual lado ganharia a concessão antes mesmo do jogo acabar, e a escolha de recrutar El Dionysos para o lado Azul (o lado que seria derrotado) mostrava a sua verdadeira intenção de eliminá-lo. No fundo, Dionysos temia ser usado como bucha de canhão, uma peça descartável na guerra de mentira pela concessão.
Ao mesmo tempo que o bajulava com promessas, Jesus parecia rejeitá-lo, lançando comentários lascivos sobre Delilah, gabando-se do "corpo bonito" dela. Quando Dionysos caía na lábia e projetava ideias de como ganhar dinheiro rapidamente, usando sua inteligência para bolar planos que superavam o contrabando comum, Jesus se admirava com a grandeza das ideias. Mas havia um brilho sádico em seus olhos quando batia a mão na mesa e catava: "Quer pegar o troféu antes de terminar o jogo, aqui não, aqui não."
Ele não queria o sucesso de Dionysos; ele queria sua submissão ao processo lento e doloroso do crime e da burocracia corrupta, ou sua morte. A recusa de El Dionysos foi um ato de autopreservação e, em parte, de dignidade contra aquele teatro de poder e manipulação emocional.
A Farsa Revelada
Mas a sua saída limpa do jogo deles foi vista como uma ofensa imperdoável pela Entidade Maior.
De repente, a cidade de Adelino's Garden, que antes o ignorava, passou a vê-lo como um fantasma a ser caçado. Durante a batalha pela concessão, depois que a facção Vermelha ganhou poder e a Azul ficou ainda mais forte em sua derrota (em uma ironia mística do destino), El Dionysos foi atacado de maneira sincronizada por ambas as facções no mesmo dia. Aquele momento terrível revelou a farsa: não havia rivalidade, apenas uma única máquina de moer gente, operada por um poder que permanecia nas sombras.
El Dionysos não estava do lado certo, nunca esteve. Para os agentes de Jesus (Azul), ele era um traidor que sabia demais sobre a farsa da concessão e do terror; para a facção oposta (Vermelho), ele era automaticamente um espião dos primeiros. Ele se tornou o herege no purgatório que era aquela cidade amazônica.
O Julgamento dos Puritanos
E foi aí que o misticismo sombrio da cidade se revelou por completo.
A perseguição não vinha apenas das ruas escuras ou dos becos úmidos. Ela veio da luz do dia, do púlpito. Os Puritanos da cidade, um grupo religioso que se declarava guardião da moralidade de Adelino's Garden, entraram na caça.
Eles não usavam armas de fogo, mas sim a artilharia pesada do julgamento moral. Com base em fofocas distorcidas pelos próprios criminosos e em confusões sobre o que um "ser sagrado" faria, eles o colocaram contra a parede. Usavam a história com Delilah, seu fracasso em ser "bem-sucedido" e sua associação momentânea com Jesus como prova da sua corrupção.
A Única Verdade
El Dionysos fugia dos traficantes à noite e dos "justos" durante o dia. A guerra na fronteira era uma farsa mantida por uma concessão invisível e pelo medo. A verdadeira batalha era pela alma da cidade, e El Dionysos era o único que percebia que todos os lados — os criminosos, os que se diziam santos e a autoridade que dava a concessão — serviam ao mesmo mestre da hipocrisia e da intolerância. A única verdade em Adelino's Garden era que não havia escapatória para quem se recusava a jogar o jogo.